Dormimos todos os dias, mas o que acontece à circulação enquanto o corpo repousa continua a surpreender até quem estuda o tema há décadas. Longe de ser um estado “desligado”, o sono reorganiza o trabalho do coração, afina o diâmetro dos vasos e redistribui o sangue de forma precisa para reparar tecidos, limpar resíduos metabólicos e preparar o organismo para o dia seguinte. Pequenas variações nos batimentos, na pressão arterial e no tônus vascular fazem uma diferença que se mede em anos de saúde cardiovascular.
O que acontece aos vasos e ao coração enquanto dormimos
O sistema nervoso autónomo muda de marcha quando adormecemos. A atividade parassimpática ganha terreno, levando a uma descida natural da frequência cardíaca e da pressão arterial. Esta descida, muitas vezes entre 10 e 20 por cento, funciona como um descanso ativo do aparelho cardiovascular. Ao mesmo tempo, sobe a variabilidade da frequência cardíaca, um indicador de flexibilidade do sistema nervoso que se associa a melhor adaptação ao stress e menor inflamação.
Este processo não é igual ao longo da noite. Cada estágio do sono imprime um padrão de circulação próprio:
- N1 e N2: estabilização. O corpo desliga estímulos externos, a pulsação abranda, e as artérias relaxam.
- N3 (sono profundo): é aqui que o “dipping” da pressão é mais marcado, em sincronia com picos de libertação de hormona de crescimento e reparação tecidular.
- REM: o cérebro acelera, os olhos movem-se, a atividade autonómica fica mais lábil. O coração tem oscilações breves e a pressão pode ter pequenos picos transitórios, sem perder o benefício global.
A seguir, um mapa simples para orientar estas diferenças.
| Estágio do sono | Frequência cardíaca | Pressão arterial | Tônus vascular | Fluxo cerebral | Variabilidade da FC |
|---|---|---|---|---|---|
| N1 | Desce ligeiramente | Desce | Moderado | Estável | Aumenta |
| N2 | Desce | Desce | Moderado | Estável | Aumenta |
| N3 | Mínima do ciclo | Mínima do ciclo | Mais relaxado | Reduz ligeiro | Elevada |
| REM | Oscilante | Oscilante | Variável | Aumenta | Variável |
Este padrão noturno é protetor. Pessoas com perfil “non-dipper” — ou seja, sem a descida noturna da pressão — tendem a ter mais eventos cardiovasculares e lesão de órgãos alvo. O relógio que vive dentro de nós espera esse descanso hemodinâmico.
Cérebro, sistema glinfático e fluxo sanguíneo noturno
O cérebro aproveita a noite para uma operação de limpeza. Durante o sono profundo, o espaço entre as células neuronais aumenta, facilitando o fluxo do líquido cefalorraquidiano pelo chamado sistema glinfático. Esse fluxo lava metabolitos acumulados durante a atividade diurna, incluindo proteínas associadas a doenças neurodegenerativas.
O sangue, aqui, trabalha em parceria com esse sistema. A redução moderada do fluxo cerebral durante o N3 poupa energia e oxigénio, enquanto a oscilação do REM auxilia trocas e recalibra circuitos. Um endotélio saudável, que reveste por dentro as artérias e veias, liberta óxido nítrico com maior eficiência após noites bem dormidas. Esse mediador alarga os vasos, melhora a perfusão e reduz microinflamação.
Quando o sono é curto ou fragmentado, a função endotelial ressente-se. A consequência é um vasoespasmo mais fácil, uma pressão menos estável e um risco maior de placas ateroscleróticas ao longo do tempo.
Posições de dormir e retorno venoso
A posição corporal muda o comportamento do sangue. A gravidade não descansa.
- Deitado de costas: promove distribuição uniforme; em quem tem insuficiência venosa pode agravar o edema nos tornozelos no final do dia, mas a elevação dos pés ajuda.
- De lado: costuma facilitar a respiração e reduzir ressonar. Em grávidas, o lado esquerdo favorece a perfusão uterina. Em quem tem insuficiência cardíaca, o lado direito costuma ser mais confortável.
- De bruços: pode aumentar a pressão sobre o tórax e o abdómen, dificultando a respiração e o retorno venoso do pescoço. Não é a escolha mais amigável para a circulação.
Pequenos ajustes têm impacto real. Um travesseiro que mantenha o pescoço alinhado reduz congestão venosa na cabeça. Elevar ligeiramente as pernas com uma almofada favorece o retorno ao coração em pessoas com varizes. Para quem sofre de refluxo, elevar a cabeceira 10 a 15 centímetros alivia o esófago e, em alguns casos, reduz microdespertares que perturbam o padrão cardiovascular.
Apneia do sono e ressonar: impacto vascular
Ressonar pode ser só barulho. Apneia é outra história. Na apneia obstrutiva, as vias aéreas colapsam de forma repetida. O oxigénio cai, o corpo desperta de forma reflexa, e há surtos de atividade simpática. Entre uma paragem e outra, a pressão arterial sobe em picos que, ao longo de meses e anos, magoam o endotélio e sobrecarregam o coração.
As repercussões incluem:
- Hipertensão resistente
- Arritmias, com destaque para fibrilhação auricular
- Maior espessamento da parede arterial
- Risco vascular cerebral aumentado
Intervenções funcionam. Perda de peso, evitar álcool à noite, dormir de lado e, quando indicado, uso de CPAP reduzem apneias, estabilizam a pressão e devolvem o padrão saudável de descida noturna. Muitos doentes relatam pés mais quentes e menos cãibras depois do tratamento, sinal de melhor perfusão periférica.
Temperatura, hormonas e reparação tecidular
A temperatura corporal central desce durante a noite. Para facilitar essa queda, o corpo dilata vasos na pele, libertando calor. Um quarto fresco acelera esse processo e faz o adormecer mais rápido. Por outro lado, calor excessivo prolonga a latência do sono e mantém a atividade simpática mais elevada.
No palco hormonal, o sono profundo é o momento de maior libertação de hormona de crescimento. Esta favorece síntese de colagénio, regeneração de vasos de pequeno calibre e reparação de microlesões musculares. O resultado prático aparece em menos dor, melhor performance no dia seguinte e uma rede microvascular mais eficiente.
A insulina e a regulação da glicose influenciam também a microcirculação. Noites curtas aumentam resistência à insulina, inflamam o endotélio e diminuem a biodisponibilidade de óxido nítrico. Acordar com mãos frias e formigueiro não vem do nada: é muitas vezes a soma de sono pobre, stress e hábitos que contraem os vasos.
Quem precisa de atenção especial
- Grávidas: preferência por dormir de lado esquerdo no segundo e terceiro trimestres. Hidratação adequada durante o dia e meias de compressão durante a jornada, retiradas à noite, reduzem edema.
- Idosos: tendência para menor sono profundo e maior rigidez vascular. Rotinas estáveis e luz natural de manhã ajudam o relógio interno e protegem o padrão de descida da pressão.
- Diabéticos: controlar glicemia antes de deitar evita hipoglicemias noturnas que perturbam o ritmo cardíaco e a pressão. Cuidados com os pés para prevenir lesões isquémicas.
- Atletas: treinos tardios elevam a temperatura corporal e a adrenalina. Intervalar o fim do treino e a hora de deitar em pelo menos 2 a 3 horas facilita a vasodilatação de arrefecimento e um sono mais profundo.
- Trabalhadores por turnos: o desalinhamento circadiano altera coagulação, pressão e frequência. Estratégias de luz e escuridão bem desenhadas minimizam o impacto na circulação.
Sinais de alerta durante a noite
Alguns sintomas merecem avaliação médica, sobretudo se repetidos:
- Dor no peito, aperto ou falta de ar que acordam a pessoa
- Despertares com palpitações regulares ou irregulares
- Ressonar alto com pausas respiratórias, engasgos ou cefaleia matinal
- Inchaço marcado dos tornozelos ao fim do dia que não cede com elevação
- Pés ou mãos muito frios, coloração azulada ou dor intensa nos dedos
- Cãibras noturnas frequentes nas pernas
- Dormência persistente num lado do corpo, dificuldade em falar ao acordar
- Suores noturnos associados a perda de peso ou febre
Hábitos que favorecem uma circulação suave enquanto dorme
Pequenas práticas somam grandes efeitos quando repetidas.
- Rotina regular: deitar e levantar a horas semelhantes alinha hormonas, pressão e temperatura.
- Quarto fresco e escuro: 17 a 19 graus costuma ser confortável; cortinas opacas e luzes fracas.
- Jantar leve e mais cedo: menos sal, gorduras pesadas e álcool à noite. O estômago descansado facilita a descida do tónus simpático.
- Hidratação inteligente: beber ao longo do dia e reduzir nas duas horas antes de deitar para evitar idas repetidas à casa de banho.
- Movimento: 20 a 30 minutos de caminhada ou bicicleta em horário diurno melhoram o endotélio. Alongamentos suaves e exercícios de respiração antes de deitar relaxam vasos e mente.
- Têxteis e roupa: pijamas soltos, meias sem elástico apertado, lençóis que respiram. Evitar pressão na barriga e na virilha que dificulte o retorno venoso.
- Posição: experimentar dormir de lado com uma almofada entre os joelhos, ou elevar ligeiramente as pernas se há varizes.
- Respiração lenta: 6 a 8 ciclos por minuto durante 5 a 10 minutos ao deitar aumenta a variabilidade da frequência cardíaca e facilita a queda da pressão.
O “padrão dipper” e a manhã seguinte
A maioria das pessoas tem um “mergulho” noturno da pressão arterial e uma subida natural nas primeiras horas da manhã. Este “morning surge” prepara o corpo para atividade, mas quando é exagerado associa-se a maior risco de eventos cardiovasculares nas primeiras horas do dia.
A qualidade do sono da noite anterior e a regularidade dos horários modulam esse pico matinal. Café, atrasos crónicos na hora de deitar, stress acumulado e apneia tratam mal essa curva. Boa notícia: rotinas consistentes e sono suficiente suavizam o pico e preservam a descida noturna.
Mitos frequentes
- “Dormir com meias de compressão acelera a circulação.” Meias de compressão ajudam durante o dia em pessoas com insuficiência venosa. À noite, deitar e elevar as pernas costuma ser suficiente. O uso noturno deve ser avaliado caso a caso.
- “Quanto mais quente o quarto, melhor circula o sangue.” Calor excessivo dificulta o adormecer, aumenta a frequência cardíaca e perturba a descida da pressão. Um ambiente fresco é mais amigo do sistema vascular.
- “Ressonar é normal.” Ressonar pode ser benigno, mas pausas respiratórias e sonolência diurna indicam apneia. Vale a pena estudar.
- “Beber álcool ajuda a dormir e relaxa os vasos.” O álcool até pode fazer adormecer mais rápido, mas fragmenta o sono, agrava apneias e desregula a pressão. Os benefícios não compensam.
Pequenos detalhes com grande retorno
Alguns pormenores pouco falados fazem diferença:
- Cabeceira elevada 10 a 15 centímetros pode ajudar quem tem refluxo, DPOC leve ou congestão nasal, reduzindo microdespertares simpáticos.
- Magnésio dietético, presente em legumes verdes, frutos secos e leguminosas, tem relação com melhor relaxamento vascular. Em suplementação, deve ser discutido com um profissional.
- A luz da manhã sincroniza o relógio interno, consolidando o sono profundo da noite seguinte e o padrão saudável de descida da pressão.
Um plano de 7 noites para dar impulso à circulação noturna
Dia 1
- Defina hora fixa para deitar e acordar, com janela de 8 horas para dormir.
- Ajuste o quarto para 18 graus, reduza luzes uma hora antes.
Dia 2
- Caminhe 30 minutos durante a tarde. Evite exercício intenso nas 3 horas antes de deitar.
- Troque o jantar por algo leve: sopa, legumes, proteína magra e pouco sal.
Dia 3
- Teste dormir de lado com uma almofada entre os joelhos. Eleve ligeiramente as pernas se sente inchaço vespertino.
- Pratique 5 minutos de respiração lenta ao deitar.
Dia 4
- Sem álcool à noite. Café só até à hora de almoço.
- Reforce alimentos ricos em magnésio no jantar: espinafres, feijão, amêndoas.
Dia 5
- Faça alongamentos suaves para gémeos, isquiotibiais e anca ao final da tarde.
- Desligue ecrãs 60 minutos antes de deitar; opte por leitura leve em luz quente.
Dia 6
- Observe o corpo ao acordar: pés e mãos quentes, cãibras, palpitações. Tome nota.
- Se usa meias de compressão durante o dia, coloque-as de manhã e retire ao fim da tarde para permitir drenagem em posição deitada.
Dia 7
- Reserve 10 minutos para planear a semana seguinte: horários, refeições, momentos de luz natural.
- Se deteta ressonar com pausas, sonolência diurna marcada ou ausência de descida da pressão nas medições noturnas, marque avaliação médica.
Este plano é simples, prático e ajustável. A cada semana, mantenha o que funcionou e refine o restante. Quando o sono encaixa, a circulação agradece com silêncio: menos pulsações a gritar, mais fluxo a trabalhar onde é preciso, na hora certa.